segunda-feira, 28 de abril de 2008

Raposa/Serra do Sol, ameaça ou alarmismo?

A questão Indígena brasileira só sai na mídia "não especializada" durante a "semana do índio" ou quando alguma grande tragédia se abate em alguma área indígena específica.

A Bola da vez o embate da homologação da TI Raposa/Serra do Sol.

Arrozeiros invasores (auto-intitulados bastiões do desenvolvimento do Estado de Roraima) realizando protestos e ameaçando ir à Brasília.

Índios querendo a devolução de suas terras ancestrais (luta de mais de 30 anos), brigando com outros índios ( estes ladeando os arrozeiros ) que crêem que o desenvolvimento deste Estado da República depende da monocultura branca.

Ainda há a ameaça do STF em compor o conflito.

Com o tempo falarei mais sobre este embate.

No momento aconselho a leitura do artigo de "Ana Valéria Araújo e Manuela Carneiro da Cunha" , que está na Folha de S. Paulo ("Tendências e Debates") deste sábado (26/04).

Que tomei a liberdade de reproduzir abaixo.

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As terras indígenas são uma ameaça à soberania nacional?

NÃO

A ameaça é outra

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA e ANA VALÉRIA ARAÚJO

DE NOVO esse surrado espantalho e, agora, em benefício de seis poderosos arrozeiros de Roraima instalados de má-fé em terra indígena? Que compraram benfeitorias dos que saíam dessa terra quando ela estava sendo reconhecida? Que gozam de isenção fiscal de um Estado fronteiriço que se sustenta à custa de dinheiro federal? Que se insurgiram violentamente contra o Executivo e o Judiciário? Que são, com quem os sustenta politicamente, uma verdadeira ameaça à soberania nacional? A diversidade dos povos indígenas é patrimônio do Brasil. Nosso país é megadiverso em mais de um sentido, em riqueza biológica e em riqueza cultural. Por isso a Constituição garante as terras necessárias aos índios para reprodução física e social. Isto é, os padrões culturais de sociabilidade e exploração de recursos têm de poder ser mantidos, e a continuidade da terra indígena é condição para tanto. Terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os índios têm a posse e o usufruto delas. Por isso o Estado pode ter sobre essas terras uma vigilância mais ampla do que a que pode exercer sobre terras privadas. Além disso, o Exército deve estar presente em todas as áreas de fronteiras, indígenas ou não. O então ministro da Justiça Nelson Jobim, em 1995, despachou favoravelmente à declaração de uma extensa área fronteiriça como sendo de posse permanente indígena, deixando claro que terra indígena e presença do Exército não se excluem. Historicamente, a posse indígena assegurou ao Brasil o desenho de algumas de suas fronteiras internacionais. Roraima, cujo território há cem anos foi disputado entre o Brasil e a Inglaterra, é um exemplo. Joaquim Nabuco, que defendeu a posição brasileira, argumentou justamente a presença indígena nas terras hoje conhecidas como Raposa/Serra do Sol para fundamentar o direito brasileiro. Hoje, a vigilância e a atuação dos ashaninka do Acre contra a invasão de madeireiros do Peru têm sido essencial na defesa de nossas fronteiras. Vem então outro surrado espantalho: ONGs internacionais ou com ligações internacionais. Somos inteiramente favoráveis a que se separe o joio do trigo. Se há indícios, que se investiguem, mas uma teoria conspiratória generalizada lembra o protocolo dos sábios de Sião: serve apenas para justificar o arrepio da ordem legal. Pois a verdadeira questão é o (des)respeito ao Estado de Direito: Raposa/Serra do Sol foi identificada, demarcada e homologada a muito custo durante três décadas e sob procedimento inteiramente legal. Os ocupantes da Raposa/Serra do Sol tiveram desde a demarcação em 1998 ocasião de contestá-la amplamente. Quando saiu, cumprindo a lei, uma primeira leva de ocupantes não-indígenas, os arrozeiros compraram algumas de suas benfeitorias. A Funai depositou em juízo o valor das indenizações para os últimos 53 ocupantes, que se recusaram a recebê-las -entre eles estão os arrozeiros. Imagens de satélite demonstram que, em 1992, as plantações de arroz ocupavam cerca de 2.000 ha, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República. Os arrozeiros expandiram o cultivo mesmo sabendo que eram terras indígenas e desafiando o governo federal. Alega-se que as terras indígenas em Roraima, que correspondem a 46% de sua extensão, ameaçam inviabilizar o Estado. Porém, os 54% restantes equivalem à soma da extensão de Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, ocupados por menos de 400 mil habitantes, concentrados na capital, Boa Vista. Roraima depende até hoje da remessa de recursos federais para a sua manutenção, não tendo conseguido estabelecer uma base de arrecadação local que viabilize o Estado. No entanto, o governo do Estado, em 2003, concedeu aos rizicultores isenção fiscal até o ano de 2018. Sem projeto de desenvolvimento definido e instituições republicanas consolidadas, o Estado propicia o enriquecimento ilegal, sendo os custos sociais e ambientais arcados pelo país inteiro. Quem ameaça a soberania nacional?


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, 64, é professora titular de antropologia da Universidade de Chicago (EUA) e membro da Academia Brasileira de Ciências.

ANA VALÉRIA ARAÚJO, 44, é advogada, mestre em direito internacional pelo Washington College of Law (EUA) e coordenadora-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

4 comentários:

Unknown disse...

Informações interessantes foram colocadas nesta matéria. Porém, sempre sinto que em toda opinião emitida pelos "acadêmicos", de seus modernos laptops a 3.000 km de distância, em seus confortáveis locais de trabalho, alimentados por ar-condicionado e/ou sistema de calefação, saboreando um café quentinho ou um chá com biscoitos, careça da vivencia "in loco", e do dia-a-dia desta realidade. Ressalto apenas, sem me alongar em demasia, que sempre há os 2 lados da moeda, e que arrancar a autonomia de um estado da federação, privando-lhe de metade de seu território, procurando estancar um processo tradicional de progresso econômico em razão de sabe-se certamente lá o quê, (por que a politica indigenista é confusa mesmo), é tão radical quanto derrubar todo o cerrado para plantar arroz. Tb não moro lá, mas no baixo Rio Negro. O que posso dizer é que os indios daqui mudam de opinião como mudam os ventos da grande planicie amazônica, são muito suceptiveis a opiniões de terceiros e podem sim ser influenciados por ONGs mal-intencionadas, se é que elas existem em Roraima. Cabocos são tão tradicionais e donos da herança cultural nortista quanto qualquer outro povo ou etnia, por mais ancestrais que sejam. E suas necessidade devem ser respeitadas também. Um meio termo há de ser encontrado para um acordo amigável.

Tigê Castro Sevá disse...

Agradeço ao Kleber pelo comentário, mas terei de discordar em alguns pontos.

Ao se referir a "acadêmicos em suas salas climatizadas", passa uma idéia de que aqueles que vivem em SP não consideram RR como parte na Nação.

De fato, escrevo de SP e nunca fui à RR, mas acompanho a situação do Estado e desta TI há 7 anos e SEI EXATAMENTE o tamanho do problema .

Poderia escrever por horas toda a informação acumulada que possuo, por isso preferi o artigo das minhas ex-colegas de Instituto Socioambiental (uma ONG bem brasileira , SÉRIA, e com atuação relevante no Norte do País).

Concordo quando você diz que há 2 lados da moeda, mas o argumento de "internacionalização" (como apregoam os militares) não procede neste caso. A obstrução da cadeia produtiva (como afirmam os arrozeiros) também não é um ponto que considere relevante.

O estado já é um dependente do capital governamental (sustentado por SP e suas salas climatizadas), e é considerado uma "Economia de Contra-Cheque" , pois depende diretamente dos repasses da União.

Ocorreu sim, MA FÉ dos latifundiários que se apossaram das maiores áreas da reserva ainda em 1990 -na primeira desocupação daquela área- e as revenderam a muito colonos que não sabiam se tratar de uma TI JÁ DEMARCADA. Apostou-se na inércia Estatal e em disputas de Tribunal.

(Fomentaram a criação do Município de Pacaraima dentro da TI para justificar seu argumento de ocupação e dificultar a devolução aos índios)

Se uma TI é demarcada, deve ser respeitada, NÃO FOI.

O STF não tem competência para intervir nesse assunto (feliz ou infelizmente).

A "metade do território (de RR)" é mais do que a área total de vários dos Estados da União.
Será que eles não conseguem se desenvolver com os 115 mil quilomentros quadrados restantes?

Santa Cataria possui 95 mil quilomentros quadrados (por exemplo).

Respeito a cultura do norte do país, a miscigenação nos fez BRASILEIROS mas houve uma injustiça histórica com os índios, e só agora há indícios de reparação a estes povos.

Acredito que , mesmo que tardía, a justiça está sendo feita.

Agradeço mais uma vez a possiblidade de colocar em debate esses temas. Espero ter sido claro e colocado meu ponto de vista de maneira coerente.

abraços.

Unknown disse...

Tigê,

a idéia que quero passar é a de ser preciso vivenciar localmente a dinâmica roraimista, indo muito além de acompanhar a situação de SP, mesmo que por anos. De certa maneira, e de um modo geral, nós brasileiros deveriamos vivenciar este outro Brasil. E se porventura quisermos reverter o processo tradicional de progresso - a que todos temos direito - por cadeias produtivas mais ecológicas, SP e os ricos tem por obrigação investir com dinheiro nestes outros métodos. Carecemos de bons governantes lá, e talvez pessoas cultas no assunto, como vc, após alguns anos sentindo o sabor daquela realidade, não saberiam lidar destramente com a situação? Gerenciar melhor o dinheiro repassado? Ao invés de autoritariamente demarcar, sentar e dialogar. Estamos mexendo com vidas inteiras, 30, 35 anos de ocupação. Muita calma nessa hora...

abs,
Kleber

Tigê Castro Sevá disse...

Olá Kleber,

De fato, perco muito da realidade local estando em SP, mas converso demais com pessoas que vivenciam estas realidades diárimante.

Quando defendo a demarcação (daqui de SP), espero que você não pense que eu acredito no conceito de "bom selvagem". Índios são pessoas que têm pensamentos tão diversos quantos os nossos, e em meio há quase 30 ou 40 mil deles há muitos pensamentos opostos.
O que me faz defender a demarcação da forma como ela está, é o fato de que ela JÁ ESTÁ DEMARCADA desta forma há 25 anos. Foi apenas HOMOLOGADA agora.

Qualquer pessoa que comprasse um terreno ali nestas ultimas décadas deveria saber que ali JÁ ERA Terra Indígena. (No Cartório local há esta informação)

Políticos usam a ignorância popular (que ajudam a perpetuar) para vender espaços proibidos e assim forçar o governo a fazer algo INCONSTITUCIONAL, que é rever uma demarcação feita de maneira correta, respeitando todos os trâmites de contestação pública.

Não sou contra a população local, mas contra a meia-duzia de pessoas que tentou garantir seus direitos, passando por cima de outros direitos já constituidos.

Lógicamente há índios dos 2 lados, mas o lado dos arrozeiros possui 1/3 dos índios afetados, o outro lado possui os outros 2/3.

Logicamente há a "mão" dos grandes políticos nessa discussão, usam pessoas com simples e com baixa instrução como "massa de manobra".

Quem "invadiu" a TI de "boa-fé" foi indenizado, e saiu.

Quem ficou quer baderna.

Na verdade, apesar de discordarmos nesse ponto, acredito estarmos no mesmo barco.

abraços.